Nasci com uma marca, um estigma. Carma. Sem desejo de o
sê-lo, estigmado, mas desde sempre sob sua sombra, assim vivo os meus dias, que
correm sem jamais cessar. Os estigmatizados fumam, bebem e se perdem entre as
sinuosas curvas da estrada da vida; caminho de pés descalços sob o furor do sol
na estrada-para-lugar-nenhum e o meu destino é o puro e simples fim. O fim das
coisas.
Que engraçado, ou não. Alguns nascem marcados, como
animais de rebanho, com um mau carma. Vivem, ou sobrevivem, dia a dia, prolongando
e esticando a linha vital, a força primitiva que pulsa em nosso interior, como
um apelo sufocante ante a força irracional e destruidora do fim. A cessão das
coisas, a antimatéria. Costumava (sobre)viver os dias como quem observa das
janelas dos ônibus as pinceladas agressivas de uma pintura expressionista e
pondera ali a raiva contida, o temor sublime, as paixões profundas e toda sorte
de emoção sob as quais estamos sujeitos. Era espectador do teatro da vida, da
história cênica; hoje, retomo as rédeas do eu-lírico e respiro os bastidores
desta grande saga. Tudo me leva ao fim, e não mais sou levado pela mão
invisível do destino. Minha marca, contudo, permanece como um lembrete clássico
de “não se aproxime” e da sujeira que cobre minha carne. De nada adianta que
diferente fosse, pois tudo remete ao fim.
É no cigarro, temporário e solitário, destruidor e, ao
mesmo tempo, paradoxalmente inspirador de vida que os estigmatizados encontram
sua força, seu eu, sua marca não só exterior, mas pincelada tão profunda e
impenetrável que sombreia nosso âmago com seu desenho único e desumano. É o
carma, o carma que assombra, que aflige, que oprime. A marca legal das minha
infrações etéreas e carnais. E a luz da qual sou fonte tem em sua aura negra,
decaída, a beleza que o alvo insiste em esconder, com um terror intrínseco
próprio de sua natureza autoritária. É na bebida, temporária e modificadora,
destruidora e, também, inspiradora da vida, ou melhor, dos pequenos lapsos dos
estigmas, das marcas, dos rótulos e que nos permitem vislumbrar o selvagem em
sua forma mais pura e natural, bárbara, mas consciente. Nela, se perdem as
almas, como num profundo poço da perdição ou nos caldeirões do diabo, que um
dia ousaram vislumbrar a arte, a magia, e tudo o mais que foge à vista dos
incautos carmáticos.
Apenas vendo a destruição, a desconstrução dos átomos é
que nos apercebemos do pulso vital. Conhecendo a morte, entendemos a vida. É na
beleza caída dos anjos rebeldes que se encontra a pureza dos filhos dos deuses.
É no fim da minha estrada, para lugar nenhum, que espero encontrar a resposta
que busco. É o carma. É o estigma. É o rótulo. E, depois, o fim das coisas.
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