sexta-feira, 29 de maio de 2015

Tudo há de passar

Não consigo deixar de pensar no meu futuro. Sonho e me vejo daqui alguns anos. Moro num lugar frio, de preferência a Irlanda, e trabalho num jornal local ou numa revista especializada em games. Em meus sonhos, conheço um irlandês que trabalha comigo e, nos primeiros momentos, não nos falamos ou nos conhecemos, mas somos apresentados por uma amiga em comum, também do mesmo jornal. Trocamos galanteios numa noite de bebedeira e, pouco depois, nos envolvemos.

Moro num apartamento pequeno, como gosto, e minha cozinha é revestida por tijolos, aqueles de interiores. É pequena, mas grande o suficiente para uma bancada e banquetas. Minha sala possui um sofá-cama, tevê e uma mesinha central na qual repousa um cinzeiro, um maço de cigarros mentolados e um isqueiro. Tudo limpo e, por ser Dublim, úmido, mas agradável. Acordo todos os dias de manhã em minha cama de casal, lavo meu rosto coberto por uma barba de estimação e faço um café moído na hora. Como um pão integral, uma fruta qualquer e uma bolacha natural. Meus cabelos são um pouco desgrenhados, quase falhos, e uso um óculos redondo preto e alargadores pequenos e igualmente pretos. Possuo calças sarja: preta, cáqui, cinza com riscas e azul-escuro. Também, calças jeans. Algumas camisetas. Poucas camisas. Roupas de frio. E sapatos, os mais variados. Gosto muito de correntes finas de metal ou prata. Tenho minha corrente preferida com um pingente de âncora. Em meus pulsos, pulseiras de couro e derivados. Uso perfume adocicado, pois gosto desse frescor que me traz. Um contraponto ao meu humor às vezes instável. Isso quer dizer que posso mudar do sorriso para o choro dependendo do que ocorrer no dia. Costumava mudar mais, mas ter minha independência me amadureceu com o passar do tempo.

Gosto de pensar que quando não tomo café em casa, compro um cappuccino ou um café irlandês numa cafeteria local e vou andando para o trabalho enquanto vejo inúmeras pessoas passarem por mim, com roupas de frio e sempre ocupadas. De noite, costumo sair com meus amigos para os bares e pubs da capital. Sempre sonhei em fazer um circuito de bares, e provei muitos tipos de cerveja diferentes. Aparentemente perfeito, mas não o é. Tenho em minha sala, sobre uma mesinha, vários porta-retratos. Juro por tudo que é mais sagrado: nunca tive o hábito de ter porta-retratos, nem em meu quarto, nem na casa dos meus pais. Eles mesmos só tinham os mais antigos, de quando éramos eu e minha irmã pequenos. Quando, porém, me afastei dos meus amigos, não aguentei deixá-los para trás e precisei carregá-los, em parte, junto comigo. Tenho, no centro, dois porta-retratos da minha família: meus pais e, ao lado, minha irmã, meu cunhado e seus filhos. Do lado direito, meus amigos do peito, aqueles do colégio. Um porta-retratos para cada um deles, numa foto comigo. Temos um último porta-retrato com todos juntos, e a foto está desgastada de tantas vezes que a tirei dali. Do lado esquerdo, meus amigos do peito, mas aqueles que conheci depois. Não que sejam menos importantes, mas fazem parte de tempos diferentes da minha vida. Estão todos ali, sem exceção, e, também, alguns porta-retratos que unem as variadas rodas.

É aqui que paro, penso e me entristeço. Não compreendo um futuro em que eu possa carregá-los comigo para onde quer eu que eu vá. Sim, posso levá-los em meu coração, em minha mente, mas não posso tocá-los ou senti-los: somos algo maior dividido em muitos pedaços. É difícil imaginar um futuro assim, por mais belo que seja. Por mais que eu encontre alguém, aquilo que chamam de alma gêmea, que me mantenha feliz e protegido. Ora, as amizades são aquilo que mais tenho de valioso. Para alguém que passou anos de sua vida enclausurado numa pequena jaula, foram meus amigos que me mostraram o mundo, e foram eles que me ajudaram a pintar o quadro da minha vida, mesmo que não por completo. Sonho que são bem-sucedidos; uma é escritora famosa, a outra é diretora de cinema, temos um bom administrador, bons jornalistas, uma cientista e outras belas profissões. Conheceram seus pares. Alguns se casaram, outros não tenho certeza se o desejam. Mas moramos em lugares diferentes, temos objetivos diferentes, vidas diferentes. É difícil aceitar e abrir mão daquilo que mais nos vale. É difícil aceitar perder aquilo que mais importa. Quem sou eu, porém, para chamar a amizade infinita, se somos nós finitos? Toda amizade perdura, mas também definha. Tudo tem um prazo de validade, seja a distância ou a morte. Saber que em um momento da vida, é natural que a distância cresça, mesmo que o carinho também, é aceitar um fardo que hoje me entristece o coração sobremaneira.

E como remédio me afogo nas canções de George Harrison e meu álbum favorito “All things must pass”. Sim, o nome não é pura coincidência. Em sua canção homônima, ele canta sobre as belezas e os dissabores e como tudo há de passar. O dia finda em noite; a vida, em morte; a amizade, em lembrança; a beleza, em sabedoria. Não muda o fato do ciclo da vida, mas me ajuda a entender que não sou o único que se questiona sobre. E, é claro, tenho um grande problema: acredito que muitas coisas que ocorrem a mim, ou acontecem comigo, não acontecem com outros. Me acalma saber que, nesses momentos, não estou só. Senti-me só por muito tempo e, em demasia, me corroeu e me abalou. Por isso, não me sinto bem ao pensar que, no futuro, estarei longe daqueles a quem jurei, internamente, eterna lealdade. Sinto-me só. Sinto-me feliz, mas também incompleto. Sinto que deveria recolhê-los, um a um, em suas casas e guardá-los comigo, mas não posso. Sei que, enquanto fumava meus cigarros, costumávamos estar juntos. Hoje, os fumo em casa, enquanto meu parceiro dorme. Sinto que os tenho, mas tudo passa. Tudo há de passar. E volto à realidade, às aulas, aos encontros de fins de semanas e às festas. Não consigo deixar de pensar num enorme relógio que demarca as horas que ainda terei com todos, mas não posso me ater a esse futuro agora. Meus amigos me permitem ser quem eu sou, e ser quem eu sou me permite aproveitá-los, amá-los, e carregá-los comigo, perto ou longe, até o fim.


Afinal, tudo há de passar.


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